O Princípio

Sugeriu Stephen King que «aquele que não dispõe de tempo para ler também não disporá de tempo (ou de ferramentas) para escrever.»  O que significa que, à semelhança de qualquer outra arte ou ofício, a dedicação frutuosa e bem-sucedida à escrita implica um investimento prévio na aquisição e no aperfeiçoamento de um determinado set de conhecimentos.

A prosa escorreita, cristalina, imaculada, imbuída de uma vividez inebriante que se mistura e confunde com o cheiro a papel envelhecido ou o matiz lilás de um entardecer frio de Outono…  Que melhor forma de honrar um fim-de-semana do que através de uma familiarização com obras e escritores há muito incluídos nas nossas listas pessoais? E qual o primeiro desígnio dos aspirantes a autores, senão a emulação impecável das suas referências literárias?

O Meio

Contudo, e desde logo, um vocabulário denso, robusto, variado, não se constrói da noite para o dia, constituindo um empreendimento moroso e nem sempre prazenteiro. Se bem que nem só de profusão lexical se faz um bom livro. Coloquemos as coisas nestes termos: um escritor, na acepção técnico-profissional do termo, não analisa uma obra clássica do mesmo modo que um amador, tal como um indivíduo versado em arte pictórica não contempla um quadro da mesma maneira que um leigo. O seu olhar está treinado para reconhecer técnicas, destrinçar tendências, comparar estilos, detectar pormenores. Aparentes e aborrecidas insignificâncias, dirão alguns, mas cujo domínio pleno e exacto tende a estabelecer a diferença entre a mediocridade, a mediania e a excelência.

Mas se o recurso sublime a determinados instrumentos é condição necessária tendo em vista um reconhecimento estético-literário, todavia não configura condição suficiente. Caso contrário, seria de esperar que todo e qualquer crítico renomado ou brilhante aluno de Literatura fosse, ou viesse a ser, ademais um autor consagrado – o que, de facto, não se verifica. Existe um fosso entre a potência e o acto, e às vezes nem mesmo a educação mais esmerada ou a dedicação mais abnegada conseguem suprir a liminar ausência de dotes inventivos ou imaginativos. 

Dito isto, talvez a abordagem mais eficaz em termos de aprimoramento – ou até de revolução paradigmática – no plano literário consista, ainda assim, na inculcação dos clássicos, tirando proveito da especial neuroplasticidade de crianças e jovens e, dessa forma, fomentando em termos probabilísticos uma maior incidência da genialidade consumada. Como não ler as primeiras linhas de O Estranho Caso de Dr. Jekyll e Sr. Hyde e experimentar a impressão de que, saindo à rua numa noite sombria e nevoenta, uma monstruosidade indizível se encontrará à espreita numa viela solitária e mal alumiada? Quem nunca quedou tenso e boquiaberto diante das incursões de Dostoievski aos recessos mais negros da psique humana? Que ser sensível consegue ficar indiferente às mordazes chalaças de Dickens, às pinceladas fatalistas de Tchékhov, ou às coloridas descrições paisagísticas de Turguénev?

O Fim

São os clássicos que, por definição, elevam ao máximo expoente de excelência a nossa celestial actividade; e, por isso, quer celebremos as musas, cantemos aos deuses ou escarneçamos das vicissitudes da existência, devemos sempre tornar aos vultos do passado, porquanto nos guiam pelos mesmos caminhos assustadores e sinuosos que outrora calcorrearam.